Jean-Gabriel Périot, o humanismo e a quimera

 

Qualificar Jean-Gabriel Périot como um cineasta do dito cinema de arquivo ou found footage é não só uma limitação como reduz significativamente a obra do cineasta e retira-lhe alguns dos seus filmes mais significativos. É certo que curtas-metragens suas como Eût-elle été criminelle..., L'Art délicat de la matraque, Les Barbares e The Devil são filmes que seguem os preceitos do cinema de arquivo e são também alguns dos seus trabalhos mais vistos e comentados, assim como a sua primeira e, por enquanto, única longa metragem, Une jeunesse allemande - todos filmes exibidos ao longo dos anos no IndieLisboa.

Mas a filmografia de Périot inclui também várias ficções "tradicionais" feitas com uma câmara e actores diante dela, assim como objectos mais experimentais, ensaios políticos, proto-diários filmados, performances e videoclips. Aproveitando a presente retrospectiva integral da obra do cineasta, fará sentido olhar o conjunto dos filmes e a partir dele definir as recorrências deste realizador heteróclito e imprevisível, talvez dando menos importância às obsessões estéticas ou formais que o caracterizam e mais às temáticas que nele sempre regressam: o desejo de encontrar o belo e o humano - ao longo da história e no contemporâneo - é certamente uma delas.

Pois note-se: Lovers olha para a pornografia com uma vontade plástica rara, Undo mostra-nos o fim para que coloquemos em perspectiva o nosso presente, Dies Irae recorda-nos dos perigos dos tresmalhos na fúria progressista e 200000 Phantoms olha o horror de Hiroxima e encontra nele um símbolo de esperança, apesar de rudo. Aliás, esse trabalho de encontrar o apesar de tudo é o que caracteriza duas das suas ficções, L'Optimisme e Regarder les morts, em que as suas protagonistas se deixam fascinar pela beleza improvável que o mundo lhes oferece: quer seja num mendigo que dorme no passeio ou numa pintura dos membros mortos da Facção do Exército Vermelho (RAF).

Périot é pois um realizador que tende a olhar o passado a partir do presente e a perspectivá-lo. Assim o terrorismo da RAF em Regarder les morts e depois em Une jeunesse allemande reflecte o terrorismo deste milénio; o regresso aos horrores da segunda grande guerra, entre a bomba atómica e o holocausto, passando pelo julgamento dos colaboracionistas em França, recorda-nos a nossa finitude e os horrores de que a humanidade é capaz; os filmes sobre a segregação dos negros nos EUA e a violência policial encontram espelho, por exemplo, nos recentes distúrbios em Detroit.

E se os seus filmes são políticos de uma forma activista como o boicote aos tomates de importação em #67, o ataque à classe política em Les Barbares ou à política laboral em We Are Winning, Don't Forget, certo é também que o humor e a ironia são uma constante nos seus trabalhos: especialmente naqueles em que o seu activismo LGBT se manifesta, questionando provocantemente a normalização da homossexualidade, o desejo de integração, a intimidade, a aparência, a modificação do próprio corpo e os limites da esfera do privado e do público.

Tantos são os temas como os filmes, as formas como as ideias, na obra do prolífico Jean-Gabriel Périot que, à média de dois filmes por ano, tem produzido filmes que são já por si exemplo da confusão e saturação de imagens que os múltiplos ecrãs nos oferecem. Mas é exactamente na construção da torrente como meio de recuperação simbólica e emocional de certas imagens que o seu cinema se mostra mais surpreendente. O excesso como caminho para a revelação.

Na edição de 2015 do IndieLisboa Une jeunesse allemande integrou a Competição Internacional do festival. Durante a visita de Jean-Gabriel Périot a Lisboa tive a oportunidade de realizar a seguinte entrevista que se foca essencialmente nesse seu último filme e que se segue em versão truncada.

 

Qual foi a primeira imagem, ou imagens, ou filmes, que despoletaram Une jeunesse allemande?

Creio que foram talvez duas: pessoalmente, o filme mais importante foi Deutschland im Herbst (1978), um filme colectivo, em particular a curta do Fassbinder que acabei por usar no meu filme. Foi realmente impressionante quando vi esse filme pela primeira vez e na verdade foi o primeiro que vi sobre este tema. A segunda imagem foi uma que mudou algo em mim, foi quando descobri Ulrike Meinhof num documentário em que se exibia um excerto dela a falar. E fiquei espantado, esta mulher é forte. Ela não era apenas uma terrorista, ela tinha uma vida incrível. Estas duas imagens ajudaram-me a prosseguir. Foram elas que começaram o filme.

 

Quando trabalha com arquivos crê que existe uma diferença entre cinema e outros materiais, como programas de televisão e noticias televisivas?

Nem por isso... Obviamente que não é o mesmo tipo de material. Eu posso comover-me tanto com um excerto de um filme como com um de televisão. Mas claro que também posso achá-lo terrível. Claro que sou mais sensível ao cinema, mas por vezes descubro material maravilhoso em arquivos televisivos, principalmente documentários. Aliás, a televisão desses tempos nada se compara à de hoje. Nessa altura eras capaz de encontrar uma entrevista de duas horas a um filósofo.

 

Neste filme usa materiais de vários arquivos. Houve algum que achasse mais interessante que os demais?

A cinemateca alemã obviamente, porque eles possuem todos os filmes da DFFB (Deutsche Film- und Fernsehakademie Berlin) e como tal todos os filmes feitos pelos estudantes estão lá. Não é que tenha lá passado muito tempo, devo lá ter ido umas três ou quatro vezes. Mas foi importante porque obrigou-me a mergulhar mais fundo no arquivo, já que a DFFB não era muito organizada nessa altura. Provavelmente por isso encontrei Já os filmes mais interessantes da minha pesquisa.

 

Nos seus filmes, em particular neste Une jeunesse allemande, há uma grande porção que é essencialmente arqueológica. Encontra várias peças e tenta colá-las como um vaso fenício.

Sim, mas há uma diferença: na arqueologia tenta-se encontrar a forma do vaso original ou de um corpo humano, mas para mim, com o conjunto das peças eu faço uma Quimera ... eu junto todas as peças mas no final não tem nada que ver com um esqueleto ou qualquer objecto reconhecível, tem uma nova forma composta de muitas pequenas peças. Após exumar as imagens do arquivo não me interessa fazer algo que estabeleça qualquer relação com a forma original.

 

É comum dizer, e Une jeunesse allemande reflecte isso, que os anos 1960 correspondem à ultima época em que o cinema foi usado como arma política. No entanto muitos dos seus filmes, especialmente as curtas metragens, têm essa característica.

Acho que são políticos, mas não são armas políticas... Não são o tipo de filmes em que depois de os veres queres começar urna revolução. Quem me dera que isso fosse possível, mas não tem o mesmo tipo de energia dessa altura. Há um filme em que se ensina como se faz um cocktail Molotov, esses filmes são de primeiro grau, eles ensinam a fazer algo que ajudará a revolução, são muito concretos. Nos meus filmes há uma distância maior, não são participativos, apenas estou a tentar questionar. A questionar a própria política...

 

Vendo o seu filme fiquei com a ideia de que a revolução começou na escola de cinema. Foi assim que aconteceu, ou esta ideia resulta apenas do facto de ser lá que se filmava o que estava a acontecer?

No filme eu uso muito material de arquivo da DFFB por causa do Holger Meins e talvez por isso tenha ganho importância demasiado grande . .. Mas de facto a DFFB foi importante no momento estudantil, eles começaram as greves e fizeram vários filmes políticos mal o movimento se iniciou. A escola de cinema foi um local importante mesmo que os alunos não tenham estado propriamente no centro do movimento. É semelhante ao que aconteceu em Paris durante o Maio de 68 em que a escola de design gráfico fez imensos cartazes, imprimiu-os e afixou-os nas ruas. É o tipo de lugar que dá sabor a um movimento, que lhe dá a sua cor.

 

E é exactamente porque os estudantes da DFFB produziram imagens que são agora recordados, ao contrário dos estudantes doutras escolas. Se não há imagem, não há história?

Sim ... Uma das questões do filme prende-se com o terrorismo e a forma como este é representado. E, por exemplo, quando hoje em dia há um ataque terrorista a primeira imagem que nos ocorre é a de uma pessoa terrível, violenta, de uma pessoa que cresceu com violência. Todos temos esta ideia, esta imagem, de um terrorista. Por esse motivo quis que os personagens de Une jeunesse allemande surgissem como figuras proeminentes que eram convidadas a aparecer na televisão e faziam cinema. Senti que era necessário regressar ao passado para recuperar essas imagens esquecidas que mostram como eles eram pessoas normais e bem-educadas. Eles tornaram-se terroristas... mais tarde. Eles não nasceram terroristas. Isto é importante, para que as pessoas hoje, quando ouvem a palavra "terrorista", tentem evitar o preconceito. Não é apenas um terrorista, é um ser humano que recorreu à violência - e podemos discordar disso, claro -, que não é necessariamente um louco. É mais complexo do que isso. E não é que essas imagens fossem impossíveis de encontrar, mas estavam debaixo das outras imagens...

 

Muitas das suas curtas metragens trabalham proximamente com a música, isso é algo que não acontece com Une jeunesse allemande. Foi muito diferente trabalhar num formato longo?

É capaz de ser a primeira vez que faço um filme em que a música não é muito importante. A principal ideia da montagem foi respeitar os materiais. Por isso, sempre que usei materiais de um arquivo com música, simplesmente mantive a banda sonora original. Apenas pedi a um compositor para elaborar uns pequenos trechos musicais de modo a ligar alguns fragmentos de arquivos que haviam perdido o som ou se limitavam a imagens paradas. Mas isso só ocorre duas vezes em todo o filme. Provavelmente a única música que é importante para mim é a última, feita por uma cantora dos Panteras Negras, que ajuda os espectadores a descansar e a abandonar calmamente o cinema, também pela sua força e significado.

 

Ricardo Vieira
IndieLisboa catalogo
Maio 2016